martes, 20 de marzo de 2007

ÉTICA DA MILITÂNCIA (1)

Frei Betto (2)

Durante um tempo da minha militância, eu tinha certeza de que era semente, mas estava certo também de que haveria de participar da colheita. Na época da luta armada, fui militante da organização de Carlos Marighella, a ALN (Ação Libertadora Nacional). Eu acreditava que faríamos a revolução no Brasil, chegaríamos ao poder e, quem sabe, subiríamos a Serra da Mantiqueira com a mochila nas costas e o fuzil na mão.
Hoje, não tenho tanta certeza. E muitos companheiros meus perderam esta certeza, e também o encanto pela luta. Perderam a mística da militância e foram cuidar do próprio umbigo. Atualmente, o meu lema é o seguinte: não espero mais participar da colheita, mas faço questão de morrer semente.
Algum dia, não sei quando, as futuras gerações vão participar da colheita. Mas essa colheita só vai existir se, hoje, houver quem plante. A semente é humilde; a palavra humildade tem a mesma raiz da palavra “humus” – que, em latim, significa terra. Ser humilde é ter os pés na terra. E não é fácil na militância ter os pés na terra.

1. JEC
Comecei na militância aos 13 anos, em Belo Horizonte, onde nasci, através da JEC (Juventude Estudantil Católica). Era meu colega na mesma militância e uma pessoa coerente durante toda a vida, o Henfil, que muitos conhecem através das caricaturas que ele criou (o Fradinho, a Graúna, o Severino…). O Henfil, que a gente tratava por Henriquinho, era irmão do Betinho (da campanha da fome), que naquela época também era militante em Belo Horizonte, só que já estava na JUC (Juventude Universitária Católica).
Aos 16 anos, fui eleito primeiro vice-presidente da UMES (União Municipal de Estudante de BH). Tenho uma foto de jornal daquele congresso. Ao vê-la, fico assustado. Porque eu era muito criança para ser eleito vice-presidente de uma entidade. Olho a cara de meus companheiros; todos eram mais velhos, e um deles era bem mais velho que a média e, embora já estivesse na Universidade, continuava dirigindo a entidade estadual dos secundaristas de Minas. Fazia faculdade de Direito e nós dizíamos que ele fazia faculdade de direita… Chama-se Newton Cardoso, vice-governador de Minas no governo Itamar Franco.

2. Opção de vida
No Movimento Estudantil aprendi uma coisa muito importante: que a militância só é uma opção de vida se a gente cuida também da saúde psicológica e espiritual. Porque, depois de tantos anos de militância, é triste ver quantas centenas de companheiros se aburguesaram no meio do caminho. E se você me pergunta quais as causas, eu diria que uma delas foi o excesso de radicalismo pessoal. O sujeito era militante até na hora de ir ao banheiro. Na hora do namoro, discutia o documento com a namorada, mas nunca dava um beijo nela. Na hora da dança, ficava analisando a dança e suas manifestações burguesas… Esse sectarismo levou muitos companheiros nossos a queimarem, precocemente, as suas baterias.
Somos humanos. Não podemos confundir a nossa pessoa com a nossa função na militância. Vi muitos companheiros com excelente militância enquanto eram dirigentes estudantis ou sindicais. Conheci dirigentes sindicais do ABC, onde trabalho há 22 anos, desde a época das famosas greves, que enfrentaram polícia, cacetetes, prisão, mobilizaram o país inteiro a partir do fim dos anos 70 e começo dos anos 80, e que, uma vez terminado o mandato, acabou-se o militante.
Há quem seja militante funcional, e não militante vivencial, existencial. Isto é: tem gente que é militante enquanto a militância lhe dá uma função de poder, de reconhecimento público. Mas quando volta a ser um Zé ninguém ou uma Maria anônima, a tentação é de se recolher à vida privada. É como se tivesse vergonha de ser um militante anônimo no meio da massa.
Esses militantes dos quais eu falo, depois de receberem um cargozinho numa Prefeitura qualquer do PT, adquiriram ares de doutores, quase exigindo que os companheiros os tratassem por excelência. Trocaram de roupa, de casa, de mulher e de ideologia. Porque o dia em que o PT perder a eleição naquele município e entrar o adversário, eles continuarão como funcionários, com vergonha do passado.
Não há um bom equilíbrio na militância se não cuido de minha vida psicológica, de minha vida espiritual. Faz parte da minha existência como militante o lazer, o divertimento, os momentos de encanto, gratuidade e amizade.
O militante vive em duas esferas, como toda pessoa: a esfera da necessidade e a esfera da gratuidade. Em geral, a gente se ocupa muito da esfera da necessidade, e não reserva tempo para a esfera da gratuidade. Entramos naquela racionalização imbecil de que temos de analisar a realidade, a conjuntura, e não podemos perder tempo. Assim, vamos ficando saturados, e quando se começa a ficar saturado, fazemos besteira; e quando se começa a fazer besteira, começamos a ficar autoritários, achando que o companheiro não percebe que estamos fazendo besteira; pode até perceber, mas não vai falar, porque agora sou autoridade e imponho a minha vontade, dou ordens etc. Esta é uma maneira de o militante incorporar o modelo do opressor, porque a direita também é militante. E quantas vezes a gente vira militante de esquerda, incorporando o modelo de militante da direita, autoritário, pretencioso e vaidoso.

3. O Poder
O ser humano tem três grandes tentações, aliás curiosamente retratadas nas tentações de Jesus: o sexo, o dinheiro e o poder. A maior delas é o poder. Ninguém quer largar o poder. Getúlio Vargas preferiu dar um tiro no peito a virar um cidadão comum.
Sabe como se caça macaco na Índia? O macaco tem que ser enviado para o zoológico sem nenhum ferimento. Não pode ser laçado, nem cair numa armadilha. O caçador sobe no coqueiro, abre um buraco no coco e coloca um torrão de açúcar dentro. O macaco sobe e enfia a mão para pegar o torrão de açúcar. A mão não larga o coco. E não passa pela inteligência macacal que, se largar o torrão, fica livre. Mas ele não larga. Fica segurando e perde a liberdade.
Essa é a imagem que tenho do poder. O cara não abre mão, não larga.
Como se dá esse processo de corrupção? Quando a gente é cidadão comum, principalmente quando se tem origem popular, os valores estão arraigados, vêm da família, da educação, da sociedade, da Igreja. E nós respeitamos esses valores. Nem passa pela nossa cabeça desrespeitá-los.
De repente, a gente vira militante, e a consciência revolucionária nos faz dar menos importância aos valores da sociedade, pelo fato de ela ser capitalista. Aquela sociedade que, antes, eu tanto respeitava, agora quero transformá-la. Começo a perceber, pela formação militante, que os valores nos quais eu acreditava, são valores burgueses, valores do opressor, alienantes. O problema começa quando, ao menosprezar os valores sociais, inconscientemente começo a fazer o mesmo com os valores pessoais.
Passo a não ter mais ética, pois com tanta militante bonitinha, gostosinha, porque que não vou ter um caso? Ainda mais eu, que tenho uma função de poder aqui no sindicato, no partido, no movimento. Há companheiras que, por isso, me olham diferente. Então, por que não vou ter uma transa? E quem tem poder mexe com dinheiro. Tem gente que se aproveita, por que também que não vou aproveitar? E essa grana que aquele companheiro solidário, anônimo, me deu… por que devolver para o movimento, se isso pode me propiciar um conforto maior? Começa então um processo que termina num único resultado: reforçar a direita.

4. A Moral
Fidel Castro diz muito bem: “Um revolucionário pode perder tudo – o emprego, a liberdade, a família, a vida, menos a moral”.
Vários companheiros nossos perderam a vida sob a ditadura, inclusive Frei Tito, meu companheiro na Ordem dominicana, morto em conseqüência das torturas que sofreu. Frei Tito é considerado o símbolo dos torturados da ditadura militar do Brasil. Foi torturado duas vezes. Na segunda, resistiu durante três dias, com as equipes de tortura se revezando a cada 8 horas, para que falasse e assinasse que nós, dominicanos, tínhamos participado de assalto a banco. Não cedeu, guardou silêncio, e arrebentaram ele. Um dos capitães que dirigiram a tortura disse a ele uma frase perversamente profética: “Tito, se você não falar, jamais esquecerá o preço do seu silêncio”.
Depois Tito enloqueceu. Saiu da prisão no seqüestro do embaixador alemão, em janeiro de 1970. Foi para o exílio na França e, lá, se enforcou, aos 28 anos. Ele via torturadores em cada esquina da Europa. Deixava de entrar no quarto, à noite, porque achava que o torturador estava lá dentro. Como bem disse dom Paulo Evaristo Arns, quando os restos mortais do Tito retornaram ao Brasil, em 1984: “Frei Tito não se suicidou, mas buscou do outro lado da vida a unidade que perdeu deste lado”.
Quem perde a moral não tem volta. Quando se descobre que um dirigente é corrupto, não tem volta. Ele pode se penitenciar, se converter, mas jamais merecerá a confiança que tinha antes por parte de seus companheiros e companheiras.
Estive preso duas vezes; a primeira, 15 dias, em 1964, quando eu era militante estudantil; a outra, durante quatro anos (1969-1973). Na prisão a gente também tinha militância, e muita militância. Fazíamos chegar ao exterior as denúncias de torturas no Brasil, através do esquema da Igreja. Por isso nos retiraram do meio dos presos políticos e nos passaram à condição de presos comuns. Dos 4 anos de prisão, vivi 2 anos como preso político, e 2 anos como preso comum.
A prisão é um sofrimento terrível. A pior fase é a inicial, quando acontecem as torturas. A tortura, dizia São Tomás de Aquino, é pior do que o assassinato, porque quando mato, elimino a sua existência, mas quando torturo, faço de você testemunha de sua suprema humilhação. Racho você ao meio, crio uma divisão entre o seu corpo e a sua mente, e você, para salvar o seu corpo da dor, destrói todos os seus valores morais, ideológicos e espirituais.
Por isso muitas guerrilhas de esquerda – apesar das raras exceções - jamais aceitaram torturar o inimigo. Uma guerrilha que tortura cava a sua própria cova. Pode chegar ao poder, mas não vai durar. Vai fracassar, como ocorreu ao estalinismo na União Soviética.

5. Desafio
O grande desafio da esquerda é como fazer a transformação social sem usar os recursos que favorecem a direita, e um deles é a tortura; outro, o terrorismo, e toda uma série de recursos que a gente pode usar em nome da pressa de realizar a mudança desejada, mas que, no fim das contas, favorece o inimigo. Bush deve agradecer todos os dias o serviço que Bin Laden prestou a ele. Bush foi o presidente dos EUA eleito com menos apoio popular, mas depois de 11 de setembro de 2001 chegou a ter mais de 90% de aprovação. Isso porque o terrorismo sempre favorece um único lado: a extrema-direita.
Um dos erros que a nossa geração cometeu na década de 1960 - sobretudo nós que tivemos formação cristã, militância de Igreja - foi transferir para o campo da ideologia os esquemas próprios do campo da religião. Em outras palavras, nós demos aos conceitos políticos um caráter religioso. A ciência e a política são esferas da dúvida. Não existem dogmas no campo das ciências da história. Cada vez que eu analiso um momento da história ou princípio de forma autoritária, como se fosse a verdade absoluta, sem admitir contradição, corro o risco de congelar a dinâmica do processo social. Passo a não aceitar críticas, vou ficando míope e não percebo as contradições que vão aumentando em torno de mim.
Durante onze anos (1980-1991), assessorei o diálogo Igreja e Estado em muitos países socialistas: Cuba, Nicarágua sandinista, China, União Soviética, Polônia, Alemanha Oriental, Tchecoslováquia. Para mim, não foi surpresa a queda do Muro de Berlim. Porque, em nome do proletariado, o poder do socialismo no Leste europeu não ouvia a voz do proletariado. Havia uma contradição entre os valores que devemos ter nos âmbitos social e pessoal. É uma contradição comum na esquerda do Brasil. Cria-se, então, uma esquizofrenia: no social, sou uma pessoa; no individual ou privado, sou outra. Isso é típico do modelo burguês. A burguesia fala de moral etc., mas quando quer fazer anúncio de seus produtos coloca as mulheres como se fossem iscas de açougue para atrair mosca. Essa contradição aconteceu também nos países socialistas.

6. A Crítica
A incapacidade de ouvir críticas é um dos maiores erros da esquerda. Mas não basta dizer “Companheiro, quando quiser fazer uma crítica, venha fazer”. É preciso que os nossos movimentos tenham, de maneira prevista , instâncias de críticas e autocrítica. Quem dera que cada um de nós, como dirigente, pelo menos uma vez por semestre, fizesse a seus dirigidos a pergunta que Jesus fez a seus apóstolos: 1º) O que é que o povo pensa de mim? 2º) O que vocês pensam de mim?
Tente fazer este exercício, na instância onde você vive, pelo menos uma vez por ano: “Digam com toda liberdade o que vocês pensam de mim, da minha prática, do meu desempenho. Não é para justificar ou me defender. É para eu ter clareza e saber se a visão que vocês têm da minha atuação é a visão que eu gostaria que vocês tivessem de mim, porque todos nós somos feitos de barro e sopro, somos frágeis, temos as nossas contradições, e a luta só avança porque nós nos completamos uns aos outros”.
Essa complementação só existe quando a gente consegue quebrar barreiras, de tal maneira que a nossa solidariedade no social exista, também, no pessoal. E que a gente viva verdadeiramente como companheiros, que é uma palavra que significa “compartir o pão”, e repartir o pão é dividir aquilo que há de mais íntimo na vida. Todos temos direito de ter dúvida, crise afetiva, momento de desânimo, de depressão. Nada disso é um pecado da militância; isso é próprio do ser humano.
Pecado é esconder dos companheiros as minhas fraquezas. É sinal de que estou virando fariseu, fingindo que sou uma coisa, mas sou outra. Ao mesmo tempo, faço papel de bobo, porque muitos companheiros percebem minhas fragilidades. É preciso haver uma militância em que essas fragilidades sejam também compartidas. Porque quanto mais consigo compartir as minhas fragilidades, mais consigo me reforçar e superá-las e, assim, vencer os momentos de crise, de dúvida.
O dramático é quando a gente conta com o companheiro e não sabe que ele está vivendo uma crise; só fica sabendo quando ele diz “tô fora, tô noutra”. E aí a gente se assusta e lamenta: “que pena, fulano era tão bom”. Mas foi cooptado, partiu para outra. Contudo, ninguém foi ajudá-lo naquele processo difícil que ele viveu até chegar à decisão de abandonar a luta e abraçar um caminho pessoal.

8 O Trabalho de base
Se você me perguntar quais foram os grandes erros da esquerda nesses meus 44 anos de militância, eu diria: o maior erro, muito grave e comum em todos os movimentos e instituições da esquerda é o abandono do trabalho de base. É quando a gente acha que o povo tem que acreditar na nossa luta, e se o povo não percebe que a nossa luta é justa e verdadeira, o povo é besta, imbecil, alienado, ignorante… Só que tem um detalhe: não conheço vitória sem o apoio do povo. Mas conheço conquistas que, após a vitória, perderam o apoio do povo, e o fracasso foi retumbante, como aconteceu na Nicarágua Sandinista.
Acompanhei todo o processo da Revolução Sandinista, inclusive antes de ser vitoriosa. Estive com guerrilheiros sandinistas na Costa Rica, antes da vitória dia 19 de julho de 1979. É chocante o que vi, o que muitos deles eram antes, o que passaram a ser depois, quando chegaram ao poder. O povo foi ficando distante.
Um dia viajei de Cuba para Manágua. Eu estava doente, pegara dengue em Cuba. Quando cheguei no aeroporto de Manágua, fui recebido por um dirigente sandinista. Viu que eu estava pálido, com febre, e disse: “Betto, você não vai trabalhar, não vai cumprir as tarefas que te esperam aqui; você vai para um clube dos dirigentes sandinistas para descansar. Lá tem todo conforto, e quando você estiver melhor a gente vai te buscar para o trabalho”.
Levaram-me para o antigo Country Clube de Manágua, que tinha sido apropriado pela Revolução, porque a burguesia que o freqüentava deixara o país , viajando sobretudo para os Estados Unidos.
Fiquei profundamente chocado com o que vi no clube. Camarão e lagosta à vontade. Havia bebidas finíssimas, garçons me tratando com guardanapo de linho, um requinte chocante. E, lá fora, o povo da Nicarágua sofrendo, em nome da Revolução, um desabastecimento terrível, porque o pouco de comida que restava tinha que ir para as frentes de guerra, contra a ofensiva terrorista de Reagan, presidente dos EUA.
Fui embora na tarde daquele mesmo dia. Bati na casa daquele companheiro dirigente que me levou lá, e disse a ele: “Olha, companheiro, eu não fico lá não”. “Mas, por quê?”, perguntou. “Porque aquilo é um escândalo, é um reduto contra-revolucionário”, respondi. Ele ainda tentou justificar: “Não... não é isso, aqueles companheiros garçons são todos militantes da Frente Sandinista”. Eu falei: “Deixa de ser besta, aqueles caras têm família, primos, irmãos, pai, mãe, também sofrendo aqui fora pelo desabastecimento. Aqueles caras chegam em casa à noite e contam como vocês, dirigentes, passam lá os fins de semana. E cada vez que eles contam são mais 50 ou 100 pessoas que perdem a confiança nesta Revolução. Isto é um escândalo!”
Infelizmente a história comprovou a minha intuição. Terminada a Revolução sandinista, não todos, mais alguns altos dirigentes sandinistas revelaram-se notórios corruptos. Apropriaram-se de bens que eram do Estado sandinista. Acabou o Estado sandinista e eles ficaram com mansões, fazendas, barcos, para uso familiar.
Por que isso acontece? Porque deixamos de criar mecanismos de trabalho de base. O trabalho de base nos reeduca, mina o nosso autoritarismo. Quem faz trabalho de base, tem que recomeçar lá na paróquia, na Comunidade Eclesial de Base, na base do sindicato, no assentamento. Tem que começar do zero junto ao seu João, à dona Maria, explicando o mapa do país, o que significa a palavra conjuntura; começar do B-A-BÁ, com paciência; participar das festas do povo, e caminhar com as duas pernas com as quais o povo gosta de caminhar, a da fé e a da festa. É isso que sustenta o povo brasileiro. Imaginem se tirassem essas duas pernas do povo, ele morreria de tanto sofrimento.
Estou há 22 anos na Pastoral Operária do ABC, acompanho Comunidades Eclesiais de Base, grupos de jovens, de oração etc. Não é fácil. Domingo de manhã, aquele sol, os amigos de classe média convidando “vamos para o sítio, para a praia”. Mas vou para o ABC, para a periferia fazer reunião, começar do zero, ler o Evangelho. Isso gera militância. Vocês todos vieram do trabalho de base. Alguém algum dia começou o trabalho com vocês. E a pergunta é essa: E nós, agora, estamos fazendo trabalho com quem?
Não existe árvore que dá militantes. A semente da militância é o trabalho de base, com formação intensiva. Essa formação não pode ser só política, no sentido que a minha geração da esquerda entendia. Ficava só naquelas noções de marxismo, da ciência da história, da teoria política. Não pode ser só isso. Tem que ser mais abrangente, falar dos valores, de religião, lazer, cinema, teatro, música; falar de sexualidade e de vida afetiva. Porque cada vez que a esquerda entrou no jogo da direita, de colocar a sexualidade debaixo da mesa, cometeu muita besteira.
Muitos militantes se perderam por causa do sexo. Muitos projetos comunitários desabaram por causa de equívocos afetivos entre militantes. Em nome da esquerda, da atitude revolucionária, nós clandestinizamos a vida afetiva e sexual. Não discutimos, não debatemos, não refletimos, não compartimos essa dimensão importante da vida, e na hora que a besteira está feita, não tem jeito.
As duas esferas mais fundamentais do ser humano são o ato de alimentar-se e a sexualidade, a vida afetiva. A esquerda da minha geração nunca discutiu isso. Na prisão se discutiu, porque tinha tempo para tudo. Foi lá que, pela primeira vez, a esquerda brasileira debateu essas questões.
Nenhum de nós tem bola de cristal nas mãos. Nenhum movimento possui a chave da história, para saber como a transformação da sociedade vai acontecer. Mas todos temos um patrimônio precioso, as experiências do passado e, sobretudo, os erros do passado. Quanto mais a gente conhece as experiências do passado - o socialismo do Leste europeu, a experiência sandinista, o socialismo cubano, a história da esquerda na América Latina e no Brasil -, mais a gente fica vacinado de cometer os mesmos erros no futuro. É evidente que vamos cometer outros erros, mas, espero, não aqueles que já foram cometidos. Por isso é importante ouvir a experiência de militantes que estão há décadas na luta.

8 As várias esferas
Uma coisa é certa: o meu movimento sozinho não vai fazer revolução do Brasil, e nem tem o mapa de quando ela vai ocorrer. Esse é um processo coletivo. Por isso, embora eu seja socialista, prefiro não falar de revolução socialista. Prefiro seguir a sabedoria de Mao Tsé Tung, Fidel Castro, Che Guevara e Marighella, que não fundaram um partido socialista, fundaram um movimento de libertação nacional. Por quê? Porque falar de libertação nacional é mais abrangente. Por que a bandeira da China tem quatro estrelas? Porque uma das quatro é a burguesia nacional que existia na China daquela época, e que aderiu ao processo revolucionário.
A química da transformação social é composta de vários ingredientes. Esses ingredientes não são iguais, são diferentes; até mesmo porque representam diferentes segmentos da sociedade. Sempre discuti com a esquerda mexicana, que é muito anticlerical, porque no México, em 1912, houve uma revolução, liderada por Emiliano Zapata, que tinha como uma de suas bandeiras a reforma agrária e a Igreja católica como um de seus principais inimigos. Era uma Igreja ultra conservadora, ligada aos fazendeiros e, portanto, contra a reforma agrária. Isso criou na esquerda mexicana um profundo horror a tudo que cheira a Igreja e religião. Eu sempre disse à esquerda mexicana: “Me desculpem, mas vocês não vão a lugar nenhum enquanto a companheira Guadalupe não for junto”. Quem é a companheira Guadalupe? É a Nossa Senhora Aparecida do México.
Não se faz mudança social na América Latina considerando a questão religiosa meramente tática. Não se faz revolução no Brasil com anticlericalismo ou achando que uma só classe da sociedade é revolucionária. É um conjunto de fatores que se somam. Dentro desse conjunto, há dois grandes desafios: qual é o setor de vanguarda dentro deste processo? Tem que ser um setor de extração popular, porque senão esta libertação não se completa. Como administrar isso depois é uma questão muito complicada. Muitas revoluções foram feitas com discurso burguês para o povo, dizendo o seguinte: “Vocês serão donos dos meios de produção, e não vão sofrer do jeito que os povos vizinhos sofrem; vão ter casa própria, automóvel, educação de graça, médico de graça…”, sem consciência de que, em nome da revolução, prometia-se um modelo burguês de vida.
De repente, o operário da Alemanha Oriental começou a olhar para o da Alemanha Ocidental e percebeu que, do outro lado do Muro de Berlim, o padrão de vida era melhor. “Quero ir para outro lado”, dizia ele. “Prefiro ser explorado e viver melhor do outro lado, do que ficar aqui nessa vida difícil”. Isso porque, em nome do projeto revolucionário, pintaram um projeto burguês de conquistas sociais. Essas conquistas são importantes, mas não suficientes como projeto de um mundo novo.
E qual é o setor da sociedade que vai ter hegemonia? Como realmente criar mecanismos democráticos, de tal maneira que o Estado seja apenas o comitê executivo da vontade popular? Como evitar que o sindicato seja correia-de-transmissão do Estado? Como evitar que os movimentos sociais sejam correia-de-transmissão do Estado? Como evitar a falta de democracia interna dentro do partido? Como evitar, enfim, que o cidadão corrupto não olhe para a revolução como um bezerro que olha para a vaca, esperando que haja uma teta para cada boca?
Um dos erros das revoluções foi terem se firmado criando no povo a ilusão de que todos teriam a teta para sua boca. Na hora das dificuldades, em vez de o povo assumi-las, uma parcela caiu na contra-revolução, se decepcionou, se clandestinizou.
Conheci em Moscou um operário técnico de eletrodoméstico. Consertava principalmente aparelhos de TV. Ele ganhava um salário muito bom na época: 200 rublos. Para se ter uma idéia, o maior salário, o de um ministro russo, era de 800 rublos. Aquele técnico tinha casa própria e todos os bens necessários ao conforto de uma família de classe média. Cobrava 3 rubros para consertar um televisor, mas levava 2 ou 3 meses para entregar o aparelho. Por quê? Porque era funcionário do Estado, tudo era estatal, e vocês sabem como funciona o serviço público.
Tanto no capitalismo, quanto no socialismo, o problema do absenteísmo (preguiça de trabalhar) é muito grande. Manter a mística dentro do aparelho estatal não é fácil, porque se eu trabalhar mais ou menos a coisa anda sem mim ou comigo. Aquele técnico russo fechava a oficina na hora do almoço e ia fazer a sesta, não tinha pressa, porque no fim do mês o salário dele não alterava; podia consertar 20 ou 200 televisores, o salário era o mesmo.
Mas, se você chegava na oficina dele e dizia que tinha pressa, porque a escola da sua filha faria uma apresentação de balé e a TV ia mostrar o espetáculo depois de amanhã, ele sugeria: “Então leva o aparelho para a minha casa”. Aí o conserto ficava mais caro, 30 rublos. E para onde ia aquele dinheiro? Para a economia socializada da União Soviética? Não, ia para o bolso do técnico.
Por isso também a União Soviética ruiu. Porque havia duas economias: a oficial e a paralela. Isso sabotava o projeto socialista. Essa sabotagem era criada na medida em que os mecanismos democráticos desapareciam, e o povo passava a ser delegado do poder, e não o inverso.
No evangelho de Lucas (cap. 22), Jesus faz uma comparação entre o poder como mando e o poder como serviço. “Os tiranos do mundo mandam, os outros obedecem”, disse Jesus. “Mas entre vocês deve ser ao contrário; vocês devem servir”. E essa democratização do poder a gente não vai promover quando chegar ao poder. Temos que começar agora. Criar instâncias democráticas, ágeis, mais permeáveis, de maneira que se consiga o fundamental para ganhar a luta: o apoio popular. Sem esse apoio, não há saída. Ou, se quiserem, fora do povo não há salvação.
(1) Palestra proferida no Encontro Nacional do MST, janeiro 2002.
(2)Frei Betto é escritor, assessor de movimentos pastorais e sociais, e autor de “Batismo de Sangue” (Casa Amarela), entre outros livros.



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